PROJETO DE LEI Nº 3.944, DE 2000
(Do Sr. Eber Silva)
Regulamenta a profissão de Psicanalista
Projeto de Regulamentação da Profissão de Psicanalista:
Capítulo I - Da profissão e suas atribuições
Capítulo II - Da formação do Psicanalista
Capítulo III - Das Sociedades Psicanalíticas
Capítulo IV - Do Órgão Nacional de Fiscalização da Profissão e sua Constituição
Capítulo V - Da Fiscalização do exército da profissão nas Unidades da Federação
Capítulo VI - das Disposições gerais e Transitórias
Arrazoado geral:
CONSIDERANDO a existência de fato da Psicanálise como profissão;
CONSIDERANDO tratar-se a Psicanálise de uma profissão de nível superior;
CONSIDERANDO tratar-se a Psicanálise de uma profissão de caráter clínico;
CONSIDERANDO a existência de várias correntes de Psicanálise;
CONSIDERANDO a existência no Brasil de muitas sociedades psicanalíticas e até organismo particulares que as aglomera;
CONSIDERANDO a existência de riscos às pessoas que procuram tratamento psicanalítico;
CONSIDERANDO a necessidade de disciplinar-se o processo de formação desses profissionais;
CONSIDERANDO a necessidade de fiscalização nacional do exército desta profissão;
CONSIDERANDO que as sociedades psicanalíticas existentes no Brasil já formam, credenciam em nível associacional os seus profissionais;
CONSIDERANDO a necessidade de normatizar o exercício da psicanálise até por motivos contributivos;
CONSIDERANDO a existência de conflitos políticos e epistemológicos intra-sociedades psicanalíticas e até profissões já regulamentadas que se sentem ameaçadas;
CONSIDERANDO que o Aviso de "Lei que estatuasse a respeito", ou seja que regulamentasse a referida profissão;
CONSIDERANDO que a Portaria 1334, de 21/12/94 que institui a Classificação Brasileira de //ocupações, classifica o Psicanalista no Código 0-79.90, reconhecendo, de fato, a existência da profissão de Psicanalista, mas que isso não é o bastante, pois não a regulamenta;
CONSIDERANDO que psicanálise não se confunde nem trata de patologias tributárias de nenhuma outra profissão;
CONSIDERANDO que o método psicanalítico não é princípio de nenhuma outra profissão regulamentada;
CONSIDERANDO que a figura do psicanalista é mundialmente conhecida e acatada;
CONSIDERANDO que o exercício da psicanálise tem sido objeto de Pareceres dos Concelhos profissionais interfacetários, dando conta de sua independência (CFM e CFP);
CONSIDERANDO que já existe Cursos de Pós-Graduação, tanto em nível de Lato Sensu quanto de Mestrado, em Teoria Psicanalítca, nas Universidades Federais e Particulares;
CONSIDERANDO que os Cursos de Pós-Graduação não formam profissionais;
CONSIDERANDO que os verbetes sobre psicanálise em todo os dicionários, inclusive na Enciclopédia Saraiva de Direito explicam a mesma em sua independência.
Apresentamos as seguintes justificativas, após o que segue o projeto de lei:
1) Estamos diante de uma profissão que existe, de fato, no Brasil. A mesma está entre nós há mais ou menos um século, e vem crescendo significativamente;
2) A verdade é que a formação e a fiscalização do exercício do profissional da psicanálise nunca foram normalizados, valendo tão somente os princípios doutrinários de cada corrente de psicanálise, nem sempre acordes e quantas vezes frontais, tornando a classe dos psicanalistas até suspeita, o que demanda uma urgente regulamentação que discipline todos os ângulos dessa profissão, socialmente útil e legalmente fiscalizável, acabando com os partidarismos e com as reais ameaças à saúde do povo;
3) Quanto às sociedades psicanalíticas, as mesmas estão aí e não podem ser ignoradas. Historicamente elas vêm formando psicanalistas, e, dentro dos seus particulares princípios, abastecendo o mercado e sustentando a ciência. Portanto, não há outro meio capaz de preparar psicanalistas, razão porque esta formação lhes precisa continuar confiada. Além do mais, em todos os países os tais profissionais são formados por estas sociedades, inexistindo cursos ou processos nos meios universitários;
4) Quanto aos psicanalistas existentes, são os bandeirantes desta ciência, lutadores honrados e preocupados com o destino da mesma , razão porque terão que ser reconhecidos com os pioneiros na profissão, registrados como tais e reconhecida a sua titulação, já que os mesmos serão os formadores da próxima geração de psicanalistas;
5) Quanto ao processo de formação, essa Lei capacitará o Conselho Federal de Medicina para registrar os novos provisionais, fixar o código de ética da seguir com os procedimentos corporativos pertinentes;
6) O projeto que ora apresento, não cria corporativismo nem limita a prática da psicanálise a uma determinada corrente, o que seria inconstitucional, mas normatiza sua prática em meio a pluralidade de doutrinas;
7) O projeto que ora apresento, também reconhece as sociedades psicanalíticas existentes e devidamente registrada como sociedades formadoras;
8) O projeto é oportuno e de vanguarda, como de vanguarda é o Brasil e oportunos os movimentos que culminem com a sua grandeza. Assim, para um Brasil grande - leis modernas, profissões que atendem a realidade, tanto em termos de carência como em termos de proteção à sociedade;
9) O projeto é oportuno, ainda, por abrir, legalmente, uma nova modalidade de tratamento aos portadores de psicologias, especialmente as de natureza neuróticas, desafogando o sistema de saúde, equalizando a sociedade e diminuindo, significativamente os focos de tensão, maiores causadores de delitos e infelicidade humana;
10) Tenho certeza que os colegas abraçarão este projeto, o aprovarão e farão história na saúde mental, no Brasil e no mundo.
Capítulo I
Da profissão, do Profissional e suas atribuições
Art. 1° É reconhecida a profissão de Psicanalista e designado o título de Psicanalista Clínico que é prerrogativa dos profissionais formados e regularmente registrados de acordo com esta Lei.
Parágrafo Único. Doravante, nesta Lei e normas dela oriundas, adotar-se-á os títulos de Psicanalista Clínico ou Psicanalista.
Art. 2° A profissão de Psicanalista consiste em tratar dos pacientes portadores de distúrbios psíquicos de natureza inconsciente, tais quais as perturbações caracterológicas e estados neuróticos, perturbações sexuais, perturbações somáticos de origem psíquica e psicose de origem funcional, decorrentes de afetamento inconsciente, tratando, através do método da livre associação, as necessidades, complexos, traumas, repressões e recalques e tudo mais que perturbe o psiquismo, trazendo-os à tone da consciência, a fim de removê-los, possibilitando o equilíbrio emocional do indivíduo, inclusive quando os tais pacientes estiverem sob assistência de outro profissional de saúde.
Art. 3° O Psicanalista Clínico é o profissional que obteve o título em processo de formação levado a efeito por sociedade psicanalítica devidamente registrada nos termos desta Lei.
Art. 4° A atividade de Psicanalista Clínico será exercida em consultórios, clínicas, hospitais e instituições que atuem nas área de saúde mental.
Capítulo II
Da formação do psicanalista clínico
Art. 5° A formação do psicanalista clínico será feita pelas sociedades psicanalíticas devidamente registradas, que tenham atendido as exigências e normas adicionais estabelecidas pelo Ministério da Educação e Cultura.
Parágrafo Único. O Ministério da Educação e Cultura estabelecerá:
a) O tempo mínimo e máximo para a formação do psicanalista;
b) O currículo mínimo para a formação do psicanalista;
c) As matérias complementares para os psicanalistas que se encontram em processo de formação;
d) O estágio a ser cumprido pelo psicanalista em formação;
e) A obrigatoriedade da análise didática e sua quantidade mínima de sessões;
f) As exigências para a formação de docentes em psicanálise.
Art. 6° Será reconhecido como Psicanalista Clínico quem obtiver a formação em sociedade psicanalítica no exterior, desde que o País da Sociedade formadora garanta reciprocidade aos psicanalistas no Brasil.
Parágrafo Único. Os psicanalistas referidos no caput serão submetidos a um processo de complementação curricular, a ser fixado pelo Ministério da Educação e Cultura, a ser cumprida em uma saciedade psicanalítica credenciada.
Art. 7° O Ministério da educação e Cultura validará todos os títulos, nos níveis em que tenham sido expedidos pelas sociedades, bem como os dos psicanalistas a serem formados de que trata o Artigo 5°, desde que tenham iniciado o processo de formação antes da publicação desta lei, acrescido do estabelecimento em seu Parágrafo único, no que atinge ao conteúdo adicional.
§1º O Ministério da Educação e Cultura norma estabelecendo o prazo para que os psicanalistas em formação, objeto do previsto no caput deste Artigo, concluam o referido processo.
§2º As sociedades psicanalistas têm o prazo de 90 (noventa) dias a partir da publicação desta Lei, para submeter ao Ministério da Educação e cultura a relação dos psicanalistas em formação, especificando sua qualificação completa, formação cultural acadêmica, início do processo de formação e tempo provável para conclusão do referido processo.
Art. 8° Para ingresso no processo de formação de psicanalistas clínicos, além das exigências feitas pelas sociedades psicanalíticas, é indispensável que o candidato possua formação superior em nível de graduação plena ou equivalente.
Parágrafo Único. No caso de candidato com formação em instituição de ensino no exterior, observar-se-à sua equivalência de acordo com a legislação em vigor.
Capítulo III
Das sociedades psicanalíticas
Art. 9° são reconhecidas como sociedade psicanalíticas formadoras de psicanalistas clínicos, todas que tenham sido registradas de acordo com o código civil Brasileiro antes da vigência desta Lei.
§1º Para que as sociedades usufruam do direito de formar psicanalistas clínicos, terão que apresentar ao Ministério da Educação e Cultura, em 60 (sessenta) dias, a contar da publicação desta lei, seus Estatutos, Regimentos Internos e/ou Acadêmicos, normas que tenha sido fixadas, processo de formação sistematizado e descrito em detalhes, Código de ética, corpo docente credenciado, relação total dos psicanalistas que constituem os seus quadros, com qualificação e titulação completas.
§2º O Ministério da Educação e Cultura poderá fixar normas determinando alterações estatutárias, regimento e demais atos, visando a adequar a esta Lei, as sociedades psicanalíticas.
§3º O Ministério da Educação e Cultura descredenciará da condição de sociedade psicanalítica formadora a sociedade que descumprir o estabelecido nos parágrafos primeiro e segundo.
§4º As sociedades psicanalíticas, terão o prazo de 60 (sessenta) dias, a partir da publicação desta lei para submeter ao Ministério da Educação e Cultura a relação de seus Psicanalistas Didatas, fixando suas áreas de especialização.
§5º Fica estabelecida como área de atuação das Sociedades Psicanalíticas, a Unidade da Federação onde esteja localizada sua sede e filiais.
§6º O título conferido ao psicanalista será registrado no Ministério da Educação e Cultura ou Universidade por ele designada.
§7º - O Ministério da Educação e Cultura fixará norma estabelecendo a nomenclatura e titulo a ser conferido pelas sociedades formadoras.
Art. 10 O Ministério da Educação e Cultura fixará os critérios para credenciamento de novas sociedades psicanalíticas como sociedades formadoras.
Capítulo IV
Do Órgão nacional de fiscalização, normatização e sua constituição.
Art. 11 Compete aos Conselhos Federais e Regionais de Medicina registrar os psicanalistas e fiscalizar o exercício desta profissão.
Capítulo V
Da fiscalização do exercício profissional nas
Unidades da Federação ou regiões.
Art. 12 O registro de psicanalista de Medicina, sob a supervisão do Conselho federal de Medicina, mediante comprovação da condição de psicanalista nos termos desta Lei.
Parágrafo Único. O Conselho Regional de Medicina emitirá registro profissional em nome do Conselho Federal de Medicina, obedecendo às normas estabelecidas por este Conselho.
Art. 13 O psicanalista clínico que já exercia a profissão sem estar vinculado a qualquer sociedade psicanalítica, terá seus direitos assegurados, nos termos desta lei.
Parágrafo Único. A comprovação da condição de psicanalista clínico de não filiados às sociedades, obedecerá aos seguintes critérios:
a) Apresentação de Certificado, Diploma ou Passe fornecido por uma das sociedades psicanalíticas reconhecidas que comprove a condição de psicanalista, ou;
b) Comprovação de que exerce atividade psicoterápica em documento emitido pelos Conselhos Regionais de Medicina e Regional de Psicologia, e de que não se trata de membros dos mesmos, e;
c) Comprovação de exercício da profissão de Psicanalista através de alvará de funcionamento do consultório dos últimos doze meses, ou;
d) Comprovação feita através de publicação em revistas, livros e jornais especializados, na condição de psicanalista, antes da vigência desta Lei.
Art. 14 O profissional que tiver comprovado a condição de psicanalista clínico nos termos do Artigo 13, será devidamente registrado como psicanalista provisionado.
Art. 15 O Conselho Federal de Medicina poderá fixar normas que se fizerem necessárias, nos termos desta lei.
Art. 16 O Conselho Federal de Medicina fixará o código de Ética Psicanalítica, ao qual terão que ser compatibilizados os códigos de ética das sociedades credenciadas, no prazo de 180 dias.
Art. 17 Os Psicanalistas terão, nos Conselhos Federal e Regionais de Medicina, os mesmos direitos institucionais.
Art. 18 Os Conselhos federais e Regionais de Medicinas criarão, quando e se for o caso, dentro dos seus quadros, uma câmara de Assuntos Psicanalíticos.
Art. 19 Os casos omissos serão decididos pelo Conselho Federal de Medicina.
Art. 20 Revogam-se as disposições em contrário.
Salas de Sessões, em 13 de dezembro de 2000.
Deputado Eber Silva
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ARRAZOADO
COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA
PROJETO DE LEI Nº 3.944, DE 2000
Regulamenta a profissão de psicanalista.
Autor: Deputado Eber Silva
Relator: Deputado Rafael Guerra
I - RELATÓRIO
A proposição sob análise objetiva regulamentar a profissão de psicanalista, dispondo em seis capítulos seus dispositivos.
O Capítulo I reconhece a profissão de Psicanalista, definindo-a como aquela voltada para o tratamento de pacientes portadores de distúrbios psíquicos de natureza inconsciente, elencando quais seriam estes distúrbios. Ademais, prevê que a atividade do psicanalista será exercida em consultórios, clínicas, hospitais e instituições com atuação em saúde mental.
O Capítulo II estabelece que serão responsáveis pela formação do Psicanalista as sociedades psicanalíticas que atendam as exigências e normas do Ministério de Educação e Cultura, que disporá sobre o tempo máximo e mínimo, bem como o currículo mínimo e as matérias complementares para os psicanalistas que estejam em processo de formação, o estágio a ser cumprido, a obrigação da análise didática e a quantidade mínima de sessões e as condições para a formação de docentes em psicanálise.
Prevê, ainda, o reconhecimento do psicanalista formado em sociedade psicanalítica de outro país, desde que haja reciprocidade, e a validação, pelo Ministério da Educação e Cultura, de todos os títulos de psicanalista já concedidos pelas diversas sociedades, assim como para aqueles que tenham iniciado a formação antes da publicação da Lei. Exige, também, que o candidato ao processo de formação de psicanalista tenha nível superior.
O Capítulo III prevê o reconhecimento, como formadoras de novos psicanalistas, de todas as sociedades psicanalíticas registradas, antes da vigência desta Lei, de acordo com o Código Civil Brasileiro. Para que possam exercer o papel formador, as sociedades devem atender exigências estabelecidas pelo Ministério da Educação e Cultura. Acrescenta que o título de psicanalista será registrado nesse Ministério ou em universidade por ele indicada.
Os Capítulos IV e V definem que o órgão responsável pelo registro, pela fiscalização e pela normatização da profissão de psicanalista será o Conselho Federal de Medicina, que descentralizará suas ações para os Conselhos Regionais de Medicina.
O Capítulo VI elenca disposições gerais e transitórias, disciplinando as condições para comprovar a condição de psicanalista para os não filiados às sociedades, fixando prazo de 180 dias para o Conselho Federal de Medicina criar o Código de Ética Psicanalítica, reconhecendo os mesmos direitos institucionais dos psicanalistas no âmbito dos Conselhos de Medicina, prevendo a criação de uma Câmara de Assuntos Psicanalíticos nos Conselhos de Medicina e remetendo ao Conselho Federal de Medicina as decisões sobre os casos omissos.
Em sua justificativa, cabe destacar, o autor considera que a psicanálise já é uma profissão de fato há cerca de um século, em nosso País. Considera a existência de várias correntes, “nem sempre acordes e quantas vezes frontais”, como a principal razão para uma urgente regulamentação da profissão.
Não foram apresentadas emendas no prazo regimental.
Esta Comissão tem poder conclusivo sobre a matéria, nos termos do art. 24, II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
II - VOTO DO RELATOR
A psicanálise, em quase um século de existência, tem-se caracterizado pelo trabalho sistemático de escuta e interpretação do inconsciente, em um processo altamente complexo e diferenciado das demais atividades clínicas.
Com princípios, métodos e técnicas próprios, a psicanálise tem traçado um longo e difícil caminho, que consolidou, em praticamente todos os países do mundo, uma tradição de respeitabilidade tanto junto aos círculos acadêmicos quanto à classe médica e à sociedade em geral.
Sustentadas por bases teóricas fortes o suficiente para permitir a multiplicidade de interpretações e condutas no estudo e na pratica psicanalítica, e balizadas em preceitos éticos, as inúmeras sociedades de psicanalistas, em todo o mundo, conseguiram manter a qualidade de seus serviços por todo o século XX, sem ter sido necessária a intervenção do Estado.
Assim, não se conhece qualquer país que tenha regulado as atividades dos psicanalistas. Seja pela ausência de demanda dos que são analisados, seja pelo desinteresse e, principalmente, pela convicção da grande maioria dos psicanalistas de que suas sociedades são suficientemente preparadas para disciplinar suas próprias ações, o fato é que a regulamentação da profissão de analista sempre pareceu incoerente com a própria psicanálise.
Argumenta-se que seria praticamente impossível, e de todo inadequado, estabelecer regras para um processo de análise que se desenvolve de forma extremamente subjetiva, de acordo com as peculiaridades de cada caso individual. Impossível estabelecer prazos ou uma dinâmica prévia para que uma pessoa tenha acesso aos mecanismos de seu próprio inconsciente com o suporte de um psicanalista.
Esta é uma questão da maior importância. É a própria análise pessoal – a mais profunda e completa possível – o elemento central do processo de formação de psicanalistas. Essa atividade essencial deve ser complementada por cursos teóricos e pela supervisão dos casos clínicos, uma tríade conduzida por psicanalistas mais experientes e coordenada por uma sociedade estreitamente vinculada à tradição teórica e prática da psicanálise.
É assim que todas as tentativas de regulamentação legal foram arquivadas ou rejeitadas pelo Congresso Nacional. Não encontraram suporte para prosperar, na estrita razão da peculiaridade de seus fundamentos e funções.
A proposição em tela apresenta-se como mais uma tentativa de regulamentar a profissão de psicanalista. Para tanto, apresenta uma série de considerandos e argumentos, que merecem todo nosso respeito e consideração.
Entendemos ser absolutamente legítima a iniciativa do ilustre autor. As bases de sua justificativa, contudo, não apresentam a consistência necessária para reverter o posicionamento histórico dos psicanalistas de todo o mundo contra a regulamentação. Senão vejamos:
• A existência de várias correntes dentro da psicanálise não constitui um mal em si mesmo. Os próprios psicanalistas de longa data consideram-na como um aspecto positivo, que tem permitido o aperfeiçoamento da compreensão do pensamento psicanalítico.
• Quanto à existência de risco relativamente às pessoas que procuram tratamento psicanalítico, consideramos uma preocupação relevante, pelo menos em tese. A verdade, porém, é que as sociedades psicanalíticas têm-se mantido extremamente zelosas de sua tradição, insistindo na formação de profissionais segundo seus próprios critérios, que se traduzem pela tríade a que nos referimos acima. Evidencia-se, pois, a predominância de uma ética e de uma postura de responsabilidade em relação à formação dos psicanalistas. Dito de outro modo, a ser mantida essa tradição, que é a própria garantia de legitimidade da psicanálise, a regulamentação, por si só, não viria a reduzir os eventuais riscos em relação aos analisandos.
• Quanto à necessidade de fiscalização em âmbito nacional do exercício da profissão, novamente reafirmamos que historicamente as sociedades psicanalíticas já cumprem esse papel.
Sendo esses os aspectos centrais da argumentação, entendemos que não se mostram suficientes para justificar a regulamentação legal da atividade dos psicanalistas. Em nosso ponto de vista, somente na hipótese de ruptura dessa tradição, ocasionada por uma apropriação superficial e indevida ou um arremedo inconsistente dos métodos da psicanálise, por meio da qual se colocassem no mercado profissionais despreparados, com risco real para os usuários, somente assim, pela incidência de fatores externos, aí se apresentasse a imperiosa necessidade de intervenção do Estado, mediante regulamentação. Em todo caso, e como pressuposto inarredável, entendemos que as sociedades psicanalíticas brasileiras deveriam ser necessariamente ouvidas para apresentar propostas ou soluções.
Poderiam argumentar que esta situação já existe. Nos últimos anos, realmente, têm surgido denúncias da existência de grupos que se pretendem de psicanálise, formando “psicanalistas” sem atender aos critérios considerados, desde Freud, essenciais, defendidos e utilizados pelas sociedades psicanalíticas com tradição e vínculos internacionais. Esta nova realidade tem levado muitos psicanalistas a repensarem a já consolidada posição de não regulamentação de sua atividade.
De toda forma, a análise criteriosa deste projeto não conclui por sua aprovação, até porque, nos termos propostos, configuram-se alguns riscos para os psicanalistas e para a sociedade. Um deles está no reconhecimento automático de todos os títulos expedidos por todas as sociedades ditas psicanalíticas, tradicionais ou não, inclusive para aqueles que estiverem em processo de formação quando da entrada em vigor da lei. Dessa forma, os psicanalistas formados sem atender os critérios essências da tríade mencionada – análise pessoal, cursos teóricos e supervisão de casos clínicos – teriam definitivamente adquirido o mesmo status de um psicanalista formado dentro dessas exigências. Esta, a nosso ver, é uma grande contradição, porque justamente o indesejável – a formação inadequada, a justificar a possível regulamentação – seria legitimado em lei.
Da mesma forma, a proposição em apreciação legitimaria sociedades que formam profissionais sem atender às condições essenciais e sem qualquer vínculo com a tradição histórica da psicanálise. Tal como prevê o projeto, seria suficiente terem sido registradas em conformidade com o Código Civil Brasileiro. Sem dúvida, um outro grande contra-senso.
Também a designação do Conselho Federal de Medicina e suas regionais como responsáveis pelo registro dos psicanalistas e pela fiscalização da profissão apresenta-se como solução incompreensível. Em nenhum momento da proposição identifica-se qualquer elemento que justificasse a transferência dessa função para o órgão de fiscalização da profissão médica., até porque o projeto não caracteriza a psicanálise como especialidade da Medicina. Exige apenas que o psicanalista seja portador de diploma de nível superior, com título de especialista em Psicanálise. Portanto, não se entende o sentido da proposta, que ainda inclui o estabelecimento, pelo Conselho Federal de Medicina, do Código de Ética Psicanalítica, e a concessão, aos psicanalistas, dos mesmos direitos dos médicos. A se caracterizar a Psicanálise como profissão, teríamos também que , por analogia classificar, da mesma forma, como profissões a Cardiologia, a Psiquiatria, a Nefrologia assim por diante.
Poderíamos nos alongar ainda mais demonstrando a incapacidade do projeto de lei de oferecer os meios fundamentais para uma possível regulamentação das atividades do psicanalista. Os aspectos abordados, todavia, já indicam que, se aprovado, poderá provocar grandes prejuízos ao desenvolvimento da psicanálise no Brasil, com sérios transtornos para as sociedades psicanalíticas que, ao longo de muitos e muitos anos, vêm conseguindo angariar o respeito e a confiança de todos os segmentos da sociedade. Além disso, sem sombra de dúvida, os que se utilizam de seus serviços serão as maiores vítimas.
Todas as discussões, debates e estudos de que participamos deram-nos a forte convicção da importância da psicanálise e da complexidade de todos os aspectos que a envolvem, seja de sua linguagem, de seus estudos, de sua organização e dos mecanismos de formação de psicanalistas, entre outros tantos fatores.
Diante dessa realidade, estamos convencidos de que qualquer regulamentação deve acautelar-se para não cercear o constante processo de aperfeiçoamento dos estudos e da prática psicanalítica, e de que só será possível disciplinar a matéria com a efetiva participação da comunidade psicanalítica brasileira, em um longo e criterioso processo de discussão.
Por todas essas razões, entendemos que a proposição em tela não justificou a necessidade de regulamentação da profissão. A análise do mérito, por sua vez, revelou que os dispositivos são contraditórios e muitas vezes incompreensíveis, refletindo a ausência, em seu processo de elaboração, daqueles que seriam o objeto precípuo da iniciativa.
Diante do exposto, manifestamos nosso voto contrário ao PL nº 3.944, de 2.000.
Sala da Comissão, em ____ de _______________ de 2001.
Deputado Rafael Guerra
(Relator)
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PROJETO DE LEI Nº 3.944, DE 2000
Parecer consolidado a partir dos arrazoados produzidos pelas seguintes sociedades psicanalíticas: Aleph – psicanálise e transmissão, CPMG – Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, GREP – Grupo de Estudos Psicanalíticos e IEPSI – Instituto de Estudos Psicanalíticos.
ARRAZOADO GERAL:
1) Considerando a existência da psicanálise como profissão;
A psicanálise não é uma profissão. A psicanálise é uma função que se opera a partir da experiência do analista do interior da própria experiência analítica, tanto é assim, que a psicanálise não existe como profissão autônoma em nenhum país. Legalizar a psicanálise é desconhecer exatamente o principio fundamental da mesma, ou seja, a descoberta do inconsciente.
2) Considerando tratar-se a psicanálise de uma profissão de caráter clínico;
A psicanálise é uma atividade clínica, mas não se restringe a este aspecto, constituindo arcabouço teórico amplamente utilizado em diversos campos além da área da saúde, como o Direito, a Pedagogia, a Sociologia, etc., como psicanálise em extensão se aplica em trabalhos nas escolas, hospitais, empresas, etc.
3) Considerando a existência de várias correntes da psicanálise;
Essa existência real, sendo a pluralidade profícua pois estimula o debate entre as sociedades psicanalíticas favorecendo a compreensão e apuração dos conceitos. A transformação da atividade em profissão restringiria essas diferenças.
4) Considerando a existência de muitas sociedades psicanalíticas e até organismos particulares que as aglomera;
Somente demonstra a fertilidade e a riqueza desta diversificação, constituindo espaços essências a formalização da clínica estendendo o alcance e eficácia da psicanálise.
5) Considerando a existência de risco às pessoas que procuram tratamento psicanalítico;
As sociedades psicanalíticas têm a responsabilidade de formar psicanalistas competentes, conferir-lhes autonomia para o exercício de sua função, responsabilizando-o quanto a ética de seus atos. A legalização não traria nenhuma garantia quanto à diminuição do risco, sendo que a garantia profissional gera corporativismo que muitas vezes se torna gerador de riscos.
6) Considerando a necessidade de disciplinar-se o processo de formação desses profissionais;
As sociedades psicanalíticas têm sido um espaço onde a formação teórico-clínica é sistematizada. Porém a análise pessoal, experiência fundamental para se tornar um analista não pode ser disciplinada. É preciso dissipar a ilusão de que a formação psicanalítica constitua o aprendizado universitário. É um saber diferenciado, onde o pré-requisito é a análise pessoal. Ao longo de sua vida Freud se torna cada vez mais taxativo ao afirmar: a exigência indispensável para que alguém se torne psicanalista é submeter-se a uma análise pessoal tão completa quanto possível.
7) Considerando a necessidade de fiscalização nacional do exercício desta profissão;
Não há como disciplinar, fiscalizar, normatizar e mesmo credenciar algo que é de caráter subjetivo e particular a cada um. Freud em A questão da análise leiga (p. 240) diz: “as coisas que realmente importam – as possibilidades de desenvolvimento interno – jamais poderão ser afetadas por regulamentos e proibições”. A análise pessoal requer dispositivos que não comportam a fiscalização.
8) Considerando que as sociedades psicanalíticas existentes no Brasil já formam, credenciam e fiscalizam em nível associacional os seus profissionais;
As sociedades psicanalíticas reconhecem ou não aqueles que se comprometem com a causa analítica. As sociedades psicanalíticas constituem um espaço de debate e transmissão da psicanálise, o que não significa que fiscalizem ou credenciem.
9) Considerando a necessidade de normatizar o exercício profissional da psicanálise até por motivos contributivos;
Aqueles que exercem a função de psicanalista já contribuem enquanto profissionais de diferentes áreas, conforme legislação vigente, nas instâncias: municipal, estadual e federal.
10) Considerando a existência de conflitos políticos e epistemológicos
intra-sociedades psicanalíticas e até profissões já regulamentadas que se sentem ameaçadas;
Conflitos políticos são inerentes a toda e qualquer instituição. A história do movimento psicanalítico, sustentada no texto de Freud: “Psicologia das Massas” aponta para essa questão, mostrando inclusive sua necessidade no sentido da renovação. Uma regulamentação nunca obstaria o aparecimento de conflitos. A tentativa de instituir a atividade psicanalítica como profissão ameaça, sim, as diferentes profissões que utilizam deste importante instrumento de tratamento.
11) Considerando que o Aviso 25757, de 06 de junho de 1957, do Ministério da Saúde já estabelecia a necessidade de “Lei que estatuasse a respeito”, ou seja, que regulamentasse a referida profissão;
Em parecer no processo do Conselho Federal de Psicologia no 014/86 sobre a regulamentação da profissão de psicanalista clínico em 1987 (texto completo anexo), o Dr. Francisco de Paula Trespalácios disse: “regulamentar a profissão de Psicanalista é descabida, já que equivale a intromissão do Estado numa esfera na qual legislação não tem qualquer efeito; nenhuma lei pode obrigar o analista a passar por uma psicanálise pessoal, nem muito menos garantir que o deitar-se durante anos no divã de um analista signifique que a análise pessoal produziu bons resultados. A psicanálise não é profissão mas o exercício de uma atividade de investigação e de aprimoramento tanto de quem escuta quanto de quem é escutado. Para ser psicanalista não basta Ter estudado Freud e seus seguidores, nem Ter tido centenas de supervisões: analisar é uma capacidade que se adquire por meio de um trabalho executado essencialmente sobre a própria pessoa, com o concurso de um outro, que já fez sobre si um trabalho equivalente.”
12) Considerando que a portaria 1334, de 21/12/94 que institui a classificação brasileira de ocupações, classifica o psicanalista no código
0-79.90, reconhecendo, de fato a existência da profissão de psicanalista, mas que isto não é o bastante, pois não a regulamenta;
Analisando a referida portaria, observa-se que esta classificação tem como finalidade unificar a nomenclatura ocupacional, portanto não objetiva a regulamentação profissional. Ou seja, explicitar uma ocupação não determina a existência de uma profissão e nem restringe o uso de um método a um âmbito profissional. No projeto, há uma equivalência incorreta entre ocupação, profissão e método de trabalho. Uma classificação de ocupações como esta da Organização Internacional do Trabalho em nada implica na conceituação de uma categoria ali constante como profissão (com o sentido legal do termo).
13) Considerando que a psicanálise não se confunde nem trata de patologias tributárias de nenhuma outra profissão;
A psicanálise não se confunde com a patologia tributária de outras profissões, ela consiste em uma leitura das várias formas de organização tanto sociais quanto psíquicas o que possibilita e permite tratar de várias patologias tributárias de outras áreas por diferentes profissionais que se utilizam do método psicanalítico.
14) Considerando que o método psicanalítico não é princípio técnico de nenhuma outra profissão regulamentada;
A ética da psicanálise nos remete a um posicionamento acorde com seu objeto que é o inconsciente e com seus princípios, que não são da mesma natureza daqueles da medicina ou da psicologia. De maneira que a abordagem desta questão ética deve ser feita a partir de tal objeto e princípios, que lhe são particulares e não seguindo os mesmos termos utilizados para aquelas profissões.
15) Considerando que a figura do psicanalista é mundialmente conhecida e acatada;
O que se destaca é o valor de um instrumento e não uma profissão. A Psicanálise sustenta há anos a fidedignidade da descoberta freudiana sem que a legislação possa de alguma maneira acrescentar algo ou esclarecer qualquer de seus fundamentos. O reconhecimento do método psicanalítico e de seus seguidores reafirma a eficácia das sociedades psicanalíticas na transmissão e formação, o que dispensa a regulamentação proposta neste projeto.
16) Considerando que o exercício da psicanálise tem sido objeto de Pareceres dos Conselhos Profissionais interfacetários, dando conta de sua independência (CFM e CFP);
A psicanálise de fato independe de qual conselho o profissional que a exerce está vinculado.
17) Considerando que já existe Curso de Pós-Graduação, tanto em nível de Lato Sensu quanto de Mestrado, em Teoria Psicanalítica, nas Universidades Federais e Particulares;
Os cursos como enunciado são de Teoria Psicanalítica, desconhecemos até a presente data qualquer proposição das Universidades de formarem psicanalistas, não constituindo portanto atributo profissional.
18) Considerando que os Cursos de Pós-Graduação não formam profissionais;
O que indica que as Universidades bem sabem da impossibilidade de dar garantia acadêmica à formação de psicanalista.
José Sebastião Menezes Fernandes
Presidente do CPMG – Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.